Skip to main content

Desde o Egipto Antigo que o homem pinta frutas. Na época desenhavam-se em túmulos na esperança de que, depois do juízo final, as almas levantadas pudessem matar a fome com aqueles frutos. Para já, ainda não lhes serviram de muito, mas a nós, séculos depois, alimentam-nos os olhos e a imaginação.

A natureza e a fruta exercem fascínio sobre o homem desde sempre e por isso damos-lhe simbolismos, inventamos significados e até criamos frutos imaginários, como mostram as seguintes dez obras. Lindas de olhar e essenciais à vida e à imaginação, aqui estão elas.

Uma romã em terracota, séculos V-IV A.C.
Uma simples romã modelada em terracota e branca — outrora há-de ter sido colorida, pintada — está hoje no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque. Parece demasiado singela, mas o que é certo é que sempre que aparece uma romã há uma história. O simbolismo desta fruta ao longo dos tempos tem sido forte e diversificado de civilização para civilização. Esta obra de arte em particular foi produzida na Grécia Antiga, onde esta fruta tanto era um símbolo feminino e de fertilidade, como de uma descida ao mundo dos mortos.

Tudo isto pode ser descodificado com o mito do rapto de Perséfone, filha de Zeus e Deméter, aristocracia do Olimpo. Perséfone foi cobiçada por vários deuses do Olimpo, mas mostrou desinteresse por todos, tendo mesmo enfurecido Hades, o deus do submundo, onde ficavam as almas depois da morte. Enfurecido, raptou-a. O rapto tinha em vista o casamento, mas Perséfone estava contrariada, chorou no mundo dos mortos dia e noite, enquanto a mãe, Deméter, deusa da terra e da agricultura, a procurava incessantemente. Desesperada, fez uma espécie de greve que resultou numa seca, sem colheitas e no enfurecimento dos humanos.

Por fim soube do paradeiro da filha e entrou pelo mundo dos mortos para a resgatar, mas Hades, num plano disfarçado de consolo para a jovem Perséfone, ofereceu-lhe uma romã. Mesmo antes de sair do submundo acompanhada pela mãe, Perséfone comeu seis grãos do fruto, sem perceber que todos os aqueles que a comem lá, estão condenados a viver debaixo da terra. Assim, Perséfone passou a viver seis meses com Hades, como rainha do submundo, e outros seis no Olimpo com a mãe. São esses os meses de boas colheitas e da generosidade da terra, Deméter: a primavera e o verão

Quando na arte Grega aparece uma romã, a descida ao mundo dos mortos é, portanto, evocada — e daí aparecer frequentemente em sepulturas, por exemplo. Por outro lado há uma ligação à terra e ao feminino e é também um dos símbolos da fertilidade.

Jardim das Delícias Terrenas, Hieronymus Bosch, 1503-1515
É possível à pintura imaginar novas frutas? Sem dúvida! A pintura serve, por um lado, como documento dos objetos de uma época, mas por outro é um lugar de imaginação (ou apenas de estilização, também uma forma de alteração da realidade). No caso da pintura do holandês medieval Hieronymus Bosch, a imaginação desempenha um importante papel — também no que toca à fruta que pinta (e inventa).

Este tríptico é uma das suas mais icónicas obras e tem um cariz moralizador muito forte: à esquerda, o Éden com Adão e Eva; ao centro, as ditas “delícias terrenas”, o pecado dos homens; à direita, o inferno. Em cada um dos painéis multiplicam-se as personagens e com elas as pequenas ações e histórias mas, no meio de tanta cor e delírio, centremo-nos no que nos interessa: fruta.

A capacidade de misturar a realidade, fantasia e o universo religioso faz com que Bosch invente frutas como um morango gigante com uma cauda espinhosa que vai às costas de uma mulher, uma espécie de pomo de que saem flores; também uma flor de onde cresce uma esfera (o fruto) com pessoas dentro; cerejas e uma espécie de maçãs que se equilibram na cabeça de algumas personagens e até amoras e morangos tão grandes que são mordidos por várias pessoas ao mesmo tempo.

O valor da maçã numa obra como esta é fácil de antecipar, já que ainda hoje é símbolo do pecado original, mas na Idade Média os morangos e as amoras tinham um valor semelhante. Estavam associados ao prazer carnal e à sensualidade e a representação de alguém a colher frutos estava igualmente associada ao sexo.

Vertumnus, Giuseppe Arcimboldo, 1591
As bochechas e o nariz são pêras e maçãs, o queixo é um ouriço de castanhas e no cabelo há uvas, romãs e cerejas. Foi assim que Giuseppe Arcimboldo pintou o seu imperador, Rudolfo II do Sacro Império Romano-Germânico. Felizmente o regente tinha sentido de humor e a sua corte era um espaço em que a arte era prezada. Toda a gente viu este retrato como uma piada, mas Arcimboldo tinha intenções sérias: queria representar o poder e domínio do Imperador sobre o mundo através do simbolismo daquelas frutas.

Com um rosto feito de colheitas de todo o mundo (incluindo as Américas, já que o milho aparece sobre uma das suas orelhas) e de todas as épocas do ano, o pintor mostra o poder e as intenções de expansão do Imperador. Há, além disto, a referência no título ao Vertumnus, adorado pela mitologia romana, deus dos pomares, dos jardins e orquestrador das estações do ano. Com isto, o autor deixa a ideia do domínio de Rudolfo II sobre a natureza.

As caras desenhadas com frutas tornaram-se um tema, uma espécie de estilo inconfundível de Arcimboldo e por isso são também famosas as faces que representam as estações do ano através das frutas da estação, ou mesmo a Cesta de Fruta, uma ilusão de ótica: de uma perspetiva parece uma cesta recheada de fruta, mas se for virada de pernas para o ar parece uma cara com um chapéu. Afinal, Arcimboldo tinha mesmo humor.

Pêras de ginjas num Cesto, Josefa d’Óbidos, 1630-1684
Quem nunca, no final de uma refeição, respondeu que “fruta não é doce”, como pretexto para terminar com uma sobremesa pecadora? Ora para Josefa d’Óbidos, uma das grandes virtuosas do barroco português, fruta e doçaria vão em pé de igualdade à mesa. Particularmente da mesa das naturezas mortas.

A natureza morta é um género antigo para as artes visuais e representa muito mais do que frutas, vegetais e outros víveres pousados sobre a mesa. É uma visualização da transitoriedade da vida, pois um fruto acabado de colher, apesar de ainda estar fresco e belo, inicia a sua decadência. Uma natureza morta (como aliás o nome em português deixa antever) avisa para a efemeridade da vida — quer da fauna e flora, quer da vida humana.

Mas enquanto há vida há beleza e Josefa d’Óbidos é rainha na representação da beleza das frutas, como se vê na pintura Pêras de Ginjas num Cesto. Tanto as pêras como as ginjas eram fortemente cultivadas na região da Estremadura e Josefa estabeleceu-se em Óbidos, como ficou marcado no seu nome. É pela altura do seu nascimento que a receita conventual do licor de ginja (ginjinha) aparece e as receitas conventuais são bem conhecidas da pintora, que noutras pinturas faz representar queijadas, doces e até uma espécie de pão de ló.

Cesto de Maçãs, Paul Cézanne, 1895
Cézanne sabia que sua visão da pintura era totalmente original, seria algo de novo e por isso dizia: “Com uma maçã vou deixar Paris de boca aberta”. Seria uma maçã de Alcobaça? Brilhante, tenra, doce e sumarenta? Fora de brincadeiras, apenas com o desenho de uma maçã este pintor conseguia levar a história da arte adiante, e fazer a ligação entre o Impressionismo do século XIX e a pintura moderna.

As suas naturezas mortas são um simples exemplo disso, como Cesto de Maçãs, uma das suas mais icónicas. Através deste género clássico, Cézanne mostra o que será o futuro da arte: menor importância do realismo, pinceladas largas, menos recurso a aspetos matemáticos e virtuosos da pintura, como a perspetiva. Este quadro, por exemplo, está cheio de “erros”, como as linhas delimitam a mesa e umas bolachas bastante estranhas ao fundo. Cézanne acredita que as regras de espaço criadas pela arte do Renascimento não são a verdadeira experiência do olho humano e é assim que as maçãs roubam a cena, com as suas cores cativantes e traços universais.

Natureza Morta com Papagaio e Fruta, Frida Kahlo, 1951
Uma história da arte marcada pela Europa e por homens, tem nesta pintura um vibrante reverso. Frida Kahlo, pintora mexicana, pintou-a já perto do final da sua vida quando, depois de muitas operações e medicação, o seu estado de saúde influenciou bastante a sua arte.

Talvez por isso a melancia e a laranja que pintou estejam talhadas — era assim que Frida Kahlo se sentia depois das suas repetidas cirurgias. Por outro lado, as cores são vibrantes e as frutas que escolheu representar, como o maracujá ou a manga, — tal como o papagaio — são uma afirmação das suas origens e da importância das Américas do mundo da arte.

O filho do Homem, René Magritte, 1964
Não é possível contar todas as vezes que a maçã foi, na história da humanidade, representada, interpretada, glosada. Ainda assim, esta é uma das mais famosas maçãs (e até frutas, provavelmente) da História da Arte. Muito possivelmente por causa de todo o mistério que suscita.

O filho do Homem foi pintado como um auto-retrato de Magritte, com a particularidade surrealista de ter uma maçã verde flutuante mesmo à frente da cara do retratado. A imagem já deu azo a muitas interpretações e os pastiches desta obra multiplicam-se pela internet, mas talvez seja melhor lermos as palavras do autor sobre a pintura para perceber o papel desta maçã.

“Ela esconde o rosto parcialmente. Bem, temos a face aparente, a maçã a esconder o visível mas oculto, o real rosto da pessoa. É algo que acontece constantemente. Tudo o que vemos esconde outra coisa, e nós sempre queremos ver o que está escondido, pelo que vemos. Há um interesse no que está escondido e que o visível não nos mostra.”

A Banana, Andy Warhol, 1967
Na Europa, Magritte e outros vanguardistas usam a fruta como um objeto quotidiano para romper com o cânone da arte. Nos Estados Unidos, Andy Warhol faz arte fascinada pelas massas, arte popular — Pop Art. A capa de álbum que desenhou para os Velvet Underground, banda de rock nova-iorquina fundada por Lou Reed, tornou-se rapidamente um ícone. Não era só a nova estética que fascinava o público: a capa era interativa e podiam descascar esta banana.

Na capa do álbum The Velvet Underground & Nico lia-se, mesmo junto à banana, “descasque com cuidado e veja”. Ao retirar a película de papel com o desenho da casca surgia uma surpreendente banana cor-de-rosa. Havia uma conotação sexual óbvia, mas também uma valorização da beleza estética dos objetos de consumo do dia a dia.

A música na época não foi um grande sucesso, mas a parceria da banda com Warhol tornou Velvet Underground e banana em sinónimos. Foi também graças à arte de Andy Warhol que The Velvet Underground & Nico foi considerado o “álbum de rock mais profético alguma vez feito”, pela revista Rolling Stone, em 2003.

Comedian, de Maurizio Cattelan, 2019
Depois desta banana lendária, é quase impossível não dar um saltinho à história mais recente para falar de outra que fez as delícias da internet. Em 2019, o italiano Maurizio Cattelan, criou uma obra de arte conceptual que foi vendida por 180 mil euros: uma banana colada à parede branca com um bocado de fita cola. Apareceu ao público pela primeira vez na galeria Art Basel Miami Beach e o galerista Emmanuel Perrotin classificou-a como um comentário ao comércio internacional e “um dispositivo de humor clássico”.

Esta banana tornou-se viral e levantou muitas discussões dentro e fora da comunidade artística: o que é arte? Como é que pode vender-se uma banana por milhares de euros se ela custou apenas alguns cêntimos? Será isto uma brincadeira de ricos? A discussão renovou-se quando, pouco depois da sua venda, o performer David Datuna entrou na sala onde Comedian (Comediante) estava exposto, descolou a banana da parede e comeu-a, numa performance a que chamou Hungry Artist (o artista com fome).

O comprador da peça, que foi doada ao Guggenheim, não precisou de se preocupar: o certificado de autenticidade vem com instruções precisas quanto à montagem e exibição da peça e diz que tanto a banana como a fita podem ser substituídas sempre que necessário.

Salada de Frutas, Joana Vasconcelos, 2019
Dá vontade de mergulhar nesta peça! Nunca a fruta foi tão… confortável. A muito celebrada artista portuguesa construiu um mural em que junta diversas frutas e, cada uma delas, é uma espécie de almofada muito colorida e apetecível. Mas nada de tocar!

Quando o galerista Fernando Santos desafiou 30 artistas a criarem obras a partir de comida, para formar a exposição Fuck Art, Let’s Eat, Joana Vasconcelos escolheu a fruta. Usou técnicas muito tradicionais como o croché feito à mão, utilizou tecidos e missangas brilhantes e evocou essa sobremesa tão celebrativa e popular que é a salada de frutas.

A artista conhecida pela obras monumentais e divertidas inspirou-se na beleza de frutas corriqueiras, como o ananás, a melancia, a tangerina, o morango, mas também naquelas mais invulgares: em baixo, dezenas de finos dedos amarelos contorcidos parecem um limão mão-de-buda. Talvez, tal como Bosch, Joana Vasconcelos se tenha deixado levar pelo encantamento que a fruta e a natureza provocam em nós e tenha imaginado novas formas de frutos. Afinal, antes desta obra de arte, quem já tinha visto um cacho com uvas de três cores?

Descubra quais são as frutas de verão!

Back to top